28 de novembro de 2008

[...]O teu amor é uma mentira, que a minha vaidade quer. Tava tocando isso. E eu nem aí.
No banco de trás um casaquinho verde musgo tamanho PP. De alguma garota da noite anterior. Ou da semana passada. Ele é cheio de garotas e pela primeira vez na vida sorri ao pensar isso. Tá certo ele. Bonitão, rico, engraçado e safado. Que mulher não se apaixona por ele?[...]

[Tati Bernardi em Não é feito pra dar certo.]

Me diz o que é o sossego...

felipe diz:
sossego é ficar na sombra de uma árvore
felipe diz:
com suco de caju
felipe diz:
um livro
felipe diz:
e um ou dois amigos
felipe diz:
né?
Nay diz:
o meu é outra coisa, mas suco de caju pode entrar na minha lista
felipe diz:
eu imaginei que suco de caju (estatisticamente) seria o 1º a ser retirado...
felipe diz:
hahahah
Nay diz:
meu sossego [cuidado pra não se afogar em mel. rs]
Nay diz:
é dormir abraçadinha, com o nariz colado na curvinha em que o pescoço vira ombro,
ficar ali quieta até quase sufocar.
Nay diz:
aí pode ter suco de caju no café da manhã
felipe diz:
assim...
felipe diz:
eu sou meu inocente, sabe?
felipe diz:
mas, eu acho (acho!) que essa noite que você for dormir abraçadinha, com o nariz colado na curvinha em que o pescoço vira ombro, ficar ali quieta até quase sufocar.
antes de dormir você vai ter qualquer coisa menos sossego...
Nay diz:
nada melhor que o desassossego antes do sossego.
felipe diz:
(6)
Nay diz:
não acha?
ou não sabe? rs
felipe diz:
eu acho que depende
Nay diz:
explica
felipe diz:
porque depende do 'quem'
felipe diz:
não adianta ser qualquer curvinha de pescoço que vira ombro
Nay diz:
claro.
o dono da curvinha é também o motivo de todos os meus sossegos e desassossegos dos ultimos meses
felipe diz:
meses?
felipe diz:
isso é um recorde pessoal?
Nay diz:
é.
recorde de intensidade
felipe diz:
a sra tá poetica hoje, hein...
Nay diz:
tá vendo.
acordei assim.

27 de novembro de 2008

o livro que eu não consigo ter.

diz qualquer coisa a este coração palerma que não sabe nada de nada, que julga que andas aqui perto e chama sem parar por ti. . .

[Miguel Esteves Cardoso em O Amor É Fodido]

O tempo todo.

Sinto. Saudade. Dele.

Quem mandou ser infinito e durar?

[...]Era um tempo de muita decência e elegância entre machos & fêmeas, não tinha essa modinha terrestre de “preciso do meu espaço”, ai, ui, que frescura! Era um tempo de vem cá meu bem, vamos rachar a taboca do universo, cola bonito, gruda a costela-superbonder na minha cama de mola. [...] Era um tempo em que a simples menção de “era uma vez” dava um nó das épocas e calendários, a criatura não sabia se estava no passado ou no futuro... Simmmm, as mulheres e seus heróis intergalácticos eram fortes, lindos e destemidos, feitos um para o outro, não tinham essa leseira-fake da moda e seus miojos de passarela, nada de sopinha instantânea, as coisas eram para sempre, em vez de perdidos no espaço com suas dê-erres (discussões de relações sem pé nem cabeça), sabiam que o eterno é o melhor que se faz agora, assim na terra como nas galáxias, sabiam que o moderno do moderno, de qualquer época, é igual a um “eu te amo” da heroína de Flash Gordon... não sai de moda nunca, never, forever, nevermores ao infinitum.

[Xico Sá]

26 de novembro de 2008

Carta às outras partes de mim




O que mais me embala nessa vida é saber que tenho vocês por perto. Tenho pensado muito na importância das pessoas na minha vida, e é fato, AMO VOCÊS. Nunca vi no mundo sintonia maior que a nossa, acho que simplesmente não existe. Não somos as mesmas (estamos bem melhores, hein?) e é muito bom saber que nossas essências ainda são. E mais: o que queremos levar de fato desta vida é amor. Nada mais. Só amor.

Por isso choramos depesperadas e sorrimos feito loucas em botecos, boates e feiras[!], por isso vivemos a vida. Por amor.

Hoje todo mundo é 'de maior' (ou quase, né, Sílvia?) e, quem ainda não é, logo logo será dona do próprio futuro. Sinto saudades, sim. Mas é uma saudade boa, de quem teve um passado lindo e cercado de gente que só me fez feliz. Seguir à diante é preciso, romper os laços, sair do berço. Despedidas são inevitáveis, separações, a distância maldita, mas a gente nunca se perde. Sempre teremos tempo pro ombrinho, pro colinho, pra cervejinha gelada e pra fofoca.

Obrigada à todas vocês que aturam minhas tpms, curam minha ressaca, escolhem minha roupa quando não quero sair, perdoam minhas crises e até os erros do meu português ruim. Vocês me fazem uma pessoa melhor, cada uma ao seu jeito.

Uma parte de mim sou eu mesma e a outra parte são vocês.

Com muito amor,

Dunha, Con, Antônia, Nay, Nanay, Paris Hilton, Katia Flávia, Nayara Stacanelli Vale.


Fiódor...

A mentira é o único privilégio humano perante todos os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano. Nunca se chegou a nenhuma verdade sem antes haver mentido de antemão quatorze, e talvez até cento e quatorze vezes, e isso é uma espécie de honra; mas nós não somos capazes nem de mentir com inteligência! Mente pra mim, mas mente a teu modo, e então te dou um beijo. Mentir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no primeiro caso és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro! A verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos; exemplos houve. E hoje, o que nós fazemos? Todos nós, todos sem exceção, no que se refere à ciência, ao desenvolvimento, ao pensamento, aos inventos, aos ideais, aos desejos, ao liberalismo, à razão, à experiência e tudo, tudo, tudo, tudo, ainda estamos na primeira classe preparatória do colégio! Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia - e nos impregnamos! Não é verdade? Não é verdade o que estou falando?

[Dostoiévski em Crime e castigo]

Como se fora um coração postiço.

Nasceu, na doce Budapeste, um menino com o coração fora do peito. Porém - diz um dr. Mereje - não foi o primeiro. Em São Paulo, há 7 anos, nasceu também uma criança assim. “Tinha o coração fora do peito, como se fora um coração postiço."

Como se fora um coração postiço... O menino paulista viveu quatro horas. Vamos supor que tenha nascido às cinco horas. Cinco horas! Um meu amigo, por nome Carlos, diria:

“...a hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam...”

Madrugada paulistana. Boceja na rua o último cidadão que passou a noite inteira fazendo esforço para ser boêmio. Há uma esperança de bonde em todos os postes. Os sinais das esquinas - vermelhos, amarelos, verdes - verdes, amarelos, vermelhos - borram o ar de amarelo, de verde, de vermelho. Olhos inquietos da madrugada. Frio. Um homem qualquer, parado por acaso no Viaduto do Chá contempla lá embaixo umas pobres árvores que ninguém nunca jamais contemplou. Humildes pés de manacá, lá embaixo. Pouquinhas flores roxas e brancas. Humildes manacás, em fila, pequenos, tristes, artificiais. As esquinas piscam. O olho vermelho do sinal sonolento tonto na cerração, pede um poema que ninguém faz. Apitos lá longe. Passam homens de cara lavada, pobres com embrulhos de jornais debaixo do braço. Esta velha mulher que vai andando pensa em outras madrugadas. Nasceu, em uma casa distante, em um subúrbio adormecido, um menino com o coração fora do peito. Ainda é noite dentro do quarto fechado, abafado, com a lâmpada acesa, gente suada. Menino do coração fora do peito, você devia vir cá fora receber o beijo da madrugada. Vamos andar pelas praças desertas, onde as estátuas molhadas cabeceiam de sono. Menino do coração fora do peito, os primeiros bondes estrondam. Vamos ouvir de perto esses barulhos da madrugada.

6 horas. O coração fora do peito bate docemente. 7 horas - o coração bate. .. 8 horas - que sol claro, que barulho na rua! - o coração bate...

9 horas - morreu o menino do coração fora do peito. Fez bem morrer, menino. O dr. Mereje resmunga: "Filho de pais alcoólatras e sifilíticos..." Deixe falar o dr. Mereje. Ele é um médico, você é o menino do coração fora do peito. Está morto. Os "pais alcoólatras e sifilíticos" fazem o enterro banal do anjinho suburbano. Mas que anjinho engraçado! - diz Nossa Senhora da Penha. O anjinho está no céu. Está no limbo, com o coração fora do peito. Os outros anjinhos olham espantados. O que é isso, "seu" paulista? Mas o menino do coração fora do peito está se rindo. Não responde nada. Podia contar a sua história: "o dr. Mereje disse que..." - mas não conta. Está rindo, mas está triste. Os anjinhos todos querem saber. Então o menino diz:

Ora, pinhões! Eu nasci com o coração fora do peito. Queria que ele batesse ao ar livre, ao sol, à chuva. Queria que ele batesse livre, bem na vista de toda a gente, dos homens, das moças. Queria que ele vivesse â luz, ao vento, que batesse a descoberto, fora da prisão, da escuridão do peito. Que batesse como uma rosa que o vento balança...

Os anjinhos todos do limbo perguntaram:

Mas então, paulistinha do coração fora do peito, pra que é que você foi morrer?

O anjinho respondeu:

Eu vi que não tinha jeito. Lá embaixo todo mundo carrega o coração dentro do peito. Bem escondido, no escuro, com paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne cobrindo. O coração trabalha sem ninguém ver. Se ele ficar fora do peito é logo ferido e morto, não tem defesa.

Os anjinhos todos do limbo estavam com os olhos espantados. O paulistinha foi falando:

E às vezes, minha gente, tem paletó, colete, camisa, pele, ossos, carne, e no fim disso tudo, lá no fundo do peito, no escuro, não tem nada, não tem coração nenhum. "E quando eu nasci, o dr. Mereje olhou meu coração livre, batendo, feito uma rosa que balança ao vento, e disse, sem saber o que dizia: "parece um coração postiço". Os homens todos, minha gente, são assim como o dr. Mereje.

Os anjinhos estavam cada vez mais espantados. Pouco depois começaram a brincar de bandido e mocinho de cinema, e aí, foi, acabou a história. Porém o menino estava aborrecido, foi dormir. Até agora, ele está dormindo. Deixa o anjinho dormir sono sossegado, dr. Mereje!

[Rubem Braga]

Rapidinha

Nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
ou um homem de fé
certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé.

[leminski em O ex-estranho]

24 de novembro de 2008

Benvinda

Dono do abandono e da tristeza
Comunico oficialmente que há um lugar na minha mesa
Pode ser que você venha por mero favor, ou venha coberta de amor
Seja lá como for, venha sorrindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o luar está chamando, que os jardins estão florindo
Que eu estou sozinho
Cheio de anseio e de esperança, comunico a toda gente
Que há lugar na minha dança
Pode ser que você venha morar por aqui, ou venha pra se despedir
Não faz mal pode vir até mentindo
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Que o meu pinho está chorando, que o meu samba está pedindo
Que eu estou sozinho
Vem iluminar meu quarto escuro, vem entrando com o ar puro
Todo novo da manhã
Oh vem a minha estrela madrugada, vem a minha namorada
Vem amada, vem urgente, vem irmã
Benvinda, benvinda, benvinda
Que essa aurora está custando, que a cidade está dormindo
Que eu estou sozinho
Certo de estar perto da alegria, comunico finalmente
Que há lugar na poesia
Pode ser que você tenha um carinho para dar, ou venha pra se consolar
Mesmo assim pode entrar que é tempo ainda
Ah, benvinda, benvinda, benvinda
Ah, que bom que você veio, e você chegou tão linda
Eu não cantei em vão
Benvinda, benvinda, benvinda. benvinda, benvinda.

[Chico Buarque]

Palpebras de neblina

Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja.E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decepada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. [...] Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta.Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?

[Caio F. Abreu]

21 de novembro de 2008

Me pego pensando

Como ela vem. Como está sendo o seu banho exatamente agora. Como ela ta cheirosa, mas que sue um tiquinho no camiño para dosar na conta, nossa! Como ela se olha no espelho na hora de se trocar. Como. Como ela fez o barulhinho do elástico da calcinha, pleft, a mais linda onomatopéias das moças. E nas vitrines da rua, como será aquela rápida mirada, extrato para simples conferência demasiadamente feminina. Como ela brigou com o cabelo hoje, porque em alguns dias os cabelos teimam em desobedecer às mulheres, sejam eles como forem. Como ela encarou o armário. Como enfiou a colher no papaia logo cedo antes de todas as acontecências. Como ela blasfemou contra o universo. Como ela disse "ai," ao teléfono, "mãe, num se preocupa, eu já estou grandinha". Como os homens a olharam no percurso, que os homens do andaime não assobiem um “gostosa” hiperbólico, sob pena de ela se achar cheinha deveras, mas que assobiem alguma coisa, que não pequem por omissões – ah, não, são homens de verdade, não trabalham com elipses. Como ela deu aquela ajeitadinha nos peitos, agora já recuando para o começo das ações, o espelho. Como ela roçou um lábio no outro para corrigir o batom e dosar na maldade. Como ela decidiu por sandálias e não por sapatos ou tênis. Como ela pôs o rosto na janela para ouvir o homem do tempo. Como ela deu aquele saltinho na rua de moça feliz por hoje. Como ela achou que o celular tocava dentro da bolsa só porque eu pensava nela e não era nada pouco.

[Xico Sá]


OHN!

20 de novembro de 2008

Anotações sobre um amor urbano

Te amo como as begônias tarântulas amam seus
congêneres; como as sementes se amam enroscadas
lentas algumas muito verdes outras escuras; a cruz
na testa lerdas prenhes; dessa agudez que me
rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um
soco na minha cara me faça menos osso e mais
verdade.
Hilda Hilst: Lucas, Naim

Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só essa vontade quase simples de estender o braço pra tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nessa janela, já dissemos tudo o que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação, impressão, ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e com a ponta dos meus dedos tocar você, natural que seja assim: O toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.

Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha pra mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi pra saber tocá-lo. Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá dizer: Não. Há uma espécie de heroísmo então quando estendo o braço, alongo as mãos, abro os dedos e brota. Toco. Perto da minha boca se entreabre lenta, úmida, cigarro, chiclete, conhaque, vermelho, os dentes se chocam, leve ruído, as línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos.

[...]Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta, e você me leva para Creta Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O telefone toca três vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois do bip que eu ligo assim que puder, ok?

O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos pra naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos, sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito, gramados batidos de Sol, poços claros. Alguma coisa então pára, as coisas param. Os automóveis nas ruas, os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos ver aqui no fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia noite em ponto. Quero fazer um feitiço pra que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse meu jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar de mim isso que não esta completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou só poeira, me espalho em grãs invisíveis pelos quatro cantos do quarto.

[...]Fala, fala, fala. Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no que diz. Apenas me deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia monótona angustiada perplexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos onde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vez em quando me dá asco - nojo é culpa, nojo é moral - você se sente sórdido, baby? - eu tenho medo, eu não quero correr risco - não é mais possível - vamos parar por aqui - quero acordar cedo, fazer cooper no parque, parar de beber, parar de fumar, parar de sentir - estou muito cansado - não faz assim, não diz assim - é muito pouco - não vai dar certo - anormal, eu tenho medo - medo é culpa, medo é moral - não vê que é isso que eles querem que você sinta? Medo, culpa, vergonha - eu aceito, eu me contento com pouco - eu não aceito nada nem me contento com pouco - eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo!

Eu quero risco, não digo. Nem que seja a morte.

[...]Chega em mim sem medo, toca meu ombro, olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois me diz: "-Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como esta. Feche as portas, não pague as contas e nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, os restos são restos. E não importam. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largo tudo. Venha comigo pra qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora já. Peço e peço e não digo nada, mas peço peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em Abril, dirá abril e maio. Ou Setembro, Outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.

Pelas escadarias da avenida deserta, lata de coca-cola largada na porta da igreja, aqui parece que o tempo não passou, quero te mostrar um vitral, esta sacada, aquele balcão como os de Lorca, entremeado de rosas, quero dividir meu olhar, desaprendi de ver sozinho e agora que tudo perdeu a magia, se magia houve, e havia, e não consigo mais ver nenhum anjo em você, pastor, mago, cigano, herói intergaláctico, argonauta, repercante, e agora que vejo apenas um rapaz dentro do qual a morte caminha inexorável, só não sabemos quando o golpe final, mas virá, cabelos tão negros, rosto quase quadrado, quase largo, quase pálido onde já começou a devastação, olhos perdidos, boca de naufrágio vermelho pesado sobre o escuro da barba malfeita, olho tudo isso que vejo e não tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo leve, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você de você muito de você.

[...] Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? E quantos mais ainda restam na palma da minha mão?
Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar desligar a TV, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha de esperma nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas a alma existe mesmo? E quem garante? E quem se importa? Apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva do teu ombro, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro do teu corpo [...] sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto. Te procuro em outro corpo, juro que um dia te encontro.

Não temos culpa. Tentei. Tentamos.

[C.F.A.]

18 de novembro de 2008

# 100.

Olha, eu estou te escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo o meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. Eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa.

[C.F.A.]

17 de novembro de 2008

A chuva era uma promessa.

- Vai sair?, ela quis saber.

- Vou.

- Vai chover...

O interesse cabia dentro de um papel de bala.


* * *


- Quer fazer amor?

Pareceu um filme rodando ao contrário. Ele, que se vestia para sair, parou e foi tirando a roupa recém colocada.

- Quero.


[Maurício Limeira em Ciclotomia]

Segunda.

[...]
dorme meu anjo que teu vira-lata, perro callejero, vigia as fronteiras da suposta realidade, é, esquece, esqueço, se não fosse amor já era... nem tinha almoço de doming
o.

[Xico Sá]

12 de novembro de 2008

Love me or leave me

Quando você bateu a porta e saiu, Chet Baker ainda cantava She Was Too Good to Me.

Com você, eu quis. O silencioso fluxo amoroso. Pra você, eu quis dizer as palavras mais belas do mundo, dizer que sou sua, que as nossas noites me emocionavam, que eu poderia dividir os meus dias com você. Eu não só quis dizer como quis ouvir, que era sua.

I would have brought you the sun, making you smile. That was my fun.

- Vai e não volta, por favor.

E você foi, me deixou aqui, acompanhadas pelas gérberas rosa, pelo gato, pela melancolia, garrafa de vinho, pelo Chet, chorando um amor que partiu, derramando lágrimas sobre os meus peitos inchados.

O problema é que eu aprendi a amar grande, errado, fodido.

E você nunca deixou que eu te amasse, inteira. Você sempre soube sair e não voltar, suspendendo o meu afeto, abafando essa história, sucessivamente, até que eu fosse obrigada a me proteger.

- Você é ansiosa.
- São muitos meses.

De uma história que se chama história interrompida, e é cheia de sentimentos frustrados, que foram sendo asfixiados nesse apartamento.

A gente foi se asfixiando nesse apartamento.

***

"As mulheres sempre sentem o impulso irresistível de resgatar os homens deles mesmos", Rosa Monteiro, em "Paixões".

Mas agora, chega.

***

Por outro lado, é realmente milagroso que um homem e uma mulher se encontrem. E fiquem juntos, mesmo na adversidade. E comunguem idéias semelhantes, ou diferentes, mas que interessem a ambos. E que gostem de música, de conversar, de sentir o cheiro da pele um do outro. Ao contrário do que eu disse, nós tivemos muitas coisas sim. Aprendemos a dançar nas noites de bebedeira, a ir desembestados até pararmos em quartinhos imundos no Catete, onde nos perdíamos um no olhar do outro. A gente teve fases, a gente se apaixonou, se desapaixonou, se reapaixonou, se largou pra se juntar de novo na próxima esquina, numa atração, que às vezes, pra mim, parecia irresistível. E sempre rimos juntos, essa é das coisas mais extraordinariamente belas que pode acontecer entre duas pessoas. Rir junto. E trocamos idéias, carinhos, remédios, e fomos musos um do outro. Nos divertimos a valer. Sim, nós fomos do caralho. Chegamos até a compartilhamos a intimidade um do outro, nosso mundo íntimo, delicado e pessoal, belo e trágico, cheio de alegrias e muita, mas muita dor.

É de fato espantoso que duas pessoas, ainda possam se encontrar. E que possam se amar, e que como todo amor, esse seja mais um amor a acabar...

Quando você bateu a porta e saiu, Chet Baker ainda cantava She Was Too Good to Me.


[Antonia Pellegrino]

NÃO SE MORRE DE AMOR DEBAIXO DESSE SOL TODO

Sossega, preta, roga uma praga neste peste e pronto, cai de novo na lama milagrosa do hedonismo. E se a vida atropelar, de nuevo outra vez, na mesma curva, anota a placa, lindinha, e arrisca o número no jogo do bicho.


[Xico Sá]

11 de novembro de 2008

Últimos segundos

Não deixe quebrar, não deixe romper, não deixe virar grafite envelhecido e esquecido como qualquer contrato sem alma. Corra e cole os pedaços, corra e segure meus pés no chão porque eu estou quase voando, ou me faça voar novamente com você. Por favor, não espere o sanduíche ou a festa do ano, não espere a minha próxima assoada de nariz e a minha cara assustada perdida na sua ausência.
Venha logo, traga de volta a minha certeza, não deixe, por favor, não deixe. Traga um agasalho para esquentar a minha falta de amor e ganhe em troca um ingresso para a minha fidelidade.
Não espere o horário do trânsito livre, não espere ouvir o que você não quer, não espere a vida dar merda para colocar a culpa na vida.
Eu ainda estou aqui por você, limpa, ilesa, sua. Mas cada milímetro do meu corpo me implora por vida, por magia, por encantamento. Por favor, me roube, não deixe, não esqueça do nosso pacto em não ser mais um daqueles casais que não conversam no restaurante e reparam tristes nos outros.
Outro dia ouvi a música do Closer e lembrei o tanto que eu te amava, o tanto que ainda te amo, mas havia esquecido. Eu lembrei que enxergar sem pretensões você dormindo, com o seu ombro caído pra frente fazendo bochechas de criança na sua cara feliz, é a visão do paraíso pra mim.
Eu preciso de força, eu preciso de ajuda, eu preciso que você me lembre de que eu não preciso de mais nada, que mais nada é tão perfeito e que podemos ser um casal imbatível.
Caso tudo isso seja um trabalho inconsciente para me perder, parabéns, você está conseguindo. Mas se ainda existir dentro de você alguma esperança, eu preciso demais que você me abrace e me faça sentir aquilo novamente. É fácil, basta você querer, eu ainda quero tanto.
Venha agora, não espere o músculo, a piada, o botão, o calo, a saudade, o arrependimento, o vazio. Eu preciso sentir que você ainda sente, eu preciso que o seu coração dê um choque no meu, eu preciso saber que seu peito ainda aperta um pouco quando eu vou embora e se espalha como borboletas nas veias quando eu chego.
Tudo o que eu quero, quando ele me olha sem pressa e sorri nervoso sem saber porque a gente procura se perder, é que você desligue o DVD e me diga que esse filme é batido e não tem final feliz. Eu quero que você grite dentro da minha cabeça que não precisamos disso e que, por alguma razão, quando a gente se afasta a dor é maior do que todo o mundo que nos espera.
Eu ainda preciso que você me ache bonita, se surpreenda, me comemore e esqueça um pouco de todo o resto pra se encantar sem medo do tempo.
Não me tire a razão, não me tire a honra, não me faça estragar tudo só para sentir o vento na cara de novo e a música alta. Berre e assopre em mim enquanto é tempo.
Me coma na cozinha, quebre a mesa, faça um escândalo, qualquer coisa para tirar o cheiro de velório do meu ventre. Eu ainda quero viver para você.
Venha agora, ganhe a corrida, passe todo o resto pra trás, é você quem eu continuo eternamente esperando na linha final.

[Tati Bernardi]



?

CESTA BÁSICA DA ALCOVA*

vinhos baratos, para que a embriaguez não tenha preço, bouquet ou safra;

&

lubrificantes, até que se ganhe a suprema intimidade do coito;

&

uma bíblia sagrada, para rezar os cânticos [e esperar por Crumb, que prepara a sua versão no livro próximo]... e eventualmente fumar maconha nas suas páginas;

&

músculos ou cubos de guloash e pimenta para um bom e revigorante caldo;

&

chá de boldo para a proteção dos fígados, embora o gozo por si já nos garanta a imunidade dos corpos;

&

leite de cabra para banhá-la inteira;

&

boas cortinas para que o sol não se vingue contra o leito nem aponte virtudes como defeitos.


[*do "Catecismo de Devoções, Intimidades et Pornografias, Xico Sá]

Ontem não deu.

Hoje eu dou.

10 de novembro de 2008

Segunda-feira brava.

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.

[Calrice Lispector]

No pressure over cappuccino.

[...]
Well, you may never be or have a husband
You may never have or hold a child
You will learn to lose everything
We are temporary arrangements

And you're like a 90's Noah
And they laughed at you as you packed
All of your things
And they wonder why you're frustrated
And they wonder why you're so angry
And is it just me
Or are you fed up?

May God bless you in your travels
In your conquests and queries

7 de novembro de 2008

Kitty, kitty, kitty...

Eu caí do telhado
Gato é assim mesmo: bandido
"Gosto de gato porque não existe gato policial", dizia Buñuel
Fritz the cat era um gato frito
Às vezes acaba o amor pela mulher e o gato sobrevive
Acaba o amor pelo rabo da mulher e o gato continua
Extensão das danadas.
[...]


[Joca Reiners Terron]

6 de novembro de 2008

Do amor e dos seus pronunciamentos

Amigo, se você é do tipo que diz “eu te amo” de uma forma, digamos assim, precoce e irresponsável, na afoiteza das primeiras e belas noites na alcova, como já tanto o fez este pusilânime cronista, prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar, digo, “se liga”, como verbalizam os avexados mancebos da hora.

Se a gazela for safa,sábia, mal algum há em tal pronúncia, até apreciará o empolgante anúncio como uma poesia de fundo, como se uma música de Sérge Gainsbourg –Je t'aime moi non plus- estivesse tocando no quarto de motel barato àquela altura.

Pensará a moça, bem baixinho, “que doce vagabundo”. Terá sido apenas um pequeno crime, como num bolero, um “besame mucho”, um cha-cha-cha num Caribe imaginário, cortinas ao vento, lua caliente lá fora, barulho de caminhões no asfalto.

Sim, a gazela pode entender como um “eu te amo mesmo, de verdade, verdadeira, assim como Deus sobre todas as coisas”.

Que mal há nisso?

Quantos amores à vera começaram com um “eu te amo” de brincadeira?

Nesses tempos de amores líquidos, de amores ficantes, de amores-vinhetas de 15 segundos, quem saberá o que venha a ser o amor patenteado pelos deuses incas ou gregos?!

O melhor mesmo é dizer, sem medo, eu te amo, e honrá-lo pelo menos enquanto o sublime eco resistir entre aquelas abençoadas quatro paredes.

E se ela acreditar, ora, ora, manda um “eu te amo, meeeesssmmmoooo”.

Com olhinhos revirados, vamos mais fundo ainda: “Eu te amo até o fim dos tempos”.

Se ela não tá nem aí, você se vira para o piano e ordena, como no filme Casablanca, mesmo que estejam atravessando a avenida Afonso Penna em Belo Horizonte, seis horas da tarde, buzinaço, hora do ângelus: “play, again, Sam!”

E manda mais “eu te amo”, como um estribilho do vento, nas oiças da desalmada, até ela acostumar com a natureza humana do macho que veio ao mundo com um cowboy solitário que tem apenas um mantra, uma bala no coldre dos sentimentos: “eu te amo”.

Monocórdico sr. das sombras cujo cardiograma é um terremoto de “eu te amos”, como um sismógrafo nervoso a riscar o mostrador da maquininha que mede os tremores demasiadamente humanos de todos os cardiologistas particulares.

Antes um “serial lover” a dizer eu te amo como um cuco desembestado a um elíptico e silencioso cabra safado que guarda os “eu te amo” para a hora do chifre ou para a extrema-unção, como meu amigo “mucho macho” que morreu balbuciando, câmera lenta, para o padre Cristiano, lá em Santana do Cariri, muito tempo atrás: “padre, me perdoa, estou morrendo, creio, e nunca disse eu te amo!”. Donde a dúbia e indecifrável sentença guarda dúvida até hoje: “para quem seria aquele guardadíssimo eu te amo?”. Para o padre ou para o seu amor proibido?

Donde baixa um Esopo fabulador para deixar a moral da crônica: mais vale um “eu te amo” que entre por um ouvido e saia pelo outro do que um silêncio mortal de um homem que nunca se empolga e deixa a gazela achando que “eu te amo” é coisa só de novela e de filme americano.


[Xico Sá]

5 de novembro de 2008

A menina e o pássaro encantado

Era uma vez uma menina que tinha como seu melhor amigo um pássaro encantado.
Ele era encantado por duas razões.
Primeiro, porque ele não vivia em gaiolas,
vivia solto
Vinha quando queria. Vinha porque amava.
Segundo, porque sempre que voltava suas penas tinham cores diferentes, as cores dos lugares por onde tinha voado.
Certa vez voltou com penas imaculadamente brancas, e ele contou estórias de montanhas cobertas de neve.
Outra vez suas penas estavam vermelhas, e ele contou estórias de desertos incendiados pelo sol.
Era grande a felicidade quando eles estavam juntos.
Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia:
"
Tenho de partir."
A menina chorava e implorava:
"
Por favor, não vá. Fico tão triste.
Terei saudades. E vou chorar..."
"
Eu também terei saudades", dizia o Pássaro.
"
Eu também vou chorar. Mas vou lhe contar um segredo:
Eu só sou encantado por causa da saudade.
É a tristeza da saudade que faz com que minhas penas fiquem bonitas.
Se eu não for não haverá saudade.
E eu deixarei de ser o pássaro encantado.
Você deixará de me amar." E partia
A menina, sozinha, chorava.
E foi numa noite de saudade que ela teve uma idéia:
"
Se o pássaro não puder partir, ele ficará.
Se ele ficar, seremos felizes para sempre.
E para ele não partir basta que eu o prenda numa gaiola."
Assim aconteceu, a menina comprou uma gaiola de prata, a mais linda.
Quando o pássaro voltou eles se abraçaram, ele contou estórias e adormeceu.
A menina, aproveitando-se do seu sono, o engaiolou.
Quando o pássaro acordou ele deu um grito de dor.
"
Ah ! menina que isso que você fez ?
Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias.
Sem a saudade o amor irá embora..."
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por acostumar.
Mas não foi isso que aconteceu.
Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se em um cinzento triste.
E veio o silêncio. Deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não era aquele o pássaro que ela amava.
E de noite chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...

Até que não mais agüentou. Abriu a porta da gaiola. "
Pode ir, pássaro", ela disse.
"
Volte quando você quiser..."
"
Obrigado, menina", disse o pássaro.
"
Irei e voltarei quando ficar encantado de novo. E você sabe:
Ficarei encantado de novo quando a saudade voltar dentro de mim e dentro de você..."

[Rubem Alves ]

3 de novembro de 2008

as lágrimas das raparigas refrescam-me. levantam-me o moral. às vezes lambo-as dos cantos dos olhos. são pequenos coquetéis sem álcool, inteiramente naturais. dizer 'não chores' funciona sempre, porque só mencionar o verbo 'chorar' emociona-as e liberta-as, dando-lhes carta branca para chorar ainda mais. só intervenho com piadas e palavras de esperança e de amor quando elas vão longe de mais e começam, por exemplo, a pingar do nariz.

as raparigas, depois de chorar, ficam com vontade de fazer amor. é como se tivessem apanhado uma carga de chuva. ficam todas molhadas. nós somos a toalha que está mais à mão. o turco maluco com que se embrulham e enxutam. é horrível, não é? mas só um santo não se aproveitaria.

e as raparigas que choram depois de se virem?
estarão assim tão arrependidas? comovidas? simplesmente agradecidas? gostaria de pensar que sim. as três coisas, pelo menos. elas próprias não sabem. riem-se logo de seguida. as piores são as que se riem logo ao princípio. mas as piores também são muitas queridas.


[miguel esteves cardoso, in "o amor é fodido"]

NÃO HÁ DIAMANTES QUE COMPREM UMA ALMA PERRA

Tudo que sei é que esta é uma história em primeira pessoa. Blow-up. Quando dei fé, cão vadio, aos teus pés lá embaixo estava, mulher-abismo. Enfiei-me entre os dedos lambi como um lazarento... pulgas passionais ainda tentaram me avisar, epa!, durante a queda, em vão. Uma mulher muito grande, alma desenhada por R. Crumb. Pulgas mais avexadas, sado-camonianas, escreveram no meu couro, em caligrafia-coceira, “o amor é fogo que arde e não se sente”, ah, se eu pego esse caolho eu furo o outro. Lambi os dedinhos, um a um, mas não com ritmo, queria que você visse o desassossego desse pobre cardisplicente sob a forte chuva de granizo. Não há guarda-chuvas para o amor, Catherine. Nem mesmo quando se tem 20 anos. Não há diamantes que comprem uma alma perra, Catherine, não há barcos, salva-vidas, só perdição e enchentes. Não à-toa os sofás bóiam nos aguaceiros. Sofás dormidos por homens que erraram, homens que já partiram. “As mulheres são todas diferentes. Quando se perde um homem, há outro igual ao virar da esquina. Quando se perde uma mulher, é uma vida”. Desde o dia em que cai aos seus pés não sabia se estava a ganhá-la ou perde-la. O AMOR É FODIDO, do amigo ultramarinho Miguel Esteves Cardoso, me ensina coisas. Ao contrário das pulgas sado-camonianas, este gajo, certa noite das antigas, na cidade de São Paulo, boate Love Story, dizia que as lágrimas das raparigas são coquetéis sem álcool. Dizer “não chores” funciona sempre, porque só mencionar o verbo “chorar” emociona-as e liberta-as, dando-lhes carta branca para chorar ainda mais. As raparigas, depois de chorar, soprou-me o gajo, lirismo-Morrisey, ficam com vontade de fazer amor.

[Xico Sá]
Segunda-feira.
Calor infernal.
Ônibus lotado.
Saudade da mãe.
Crise mundial.
Salto quebrado.
Espinha no nariz.
Cólica menstrual.
Massa não foi campeão.
Pai que enche o saco.
Internet não funciona.
Franja anelada.
Conta pra pagar
e um sorriso no rosto que não sai.

Alguém quer tentar me dar um motivo pra eu ficar de mau humor?