27 de fevereiro de 2009

Lembre-se de mim

Se você ver um par de sapatos, um pra cima outro pra baixo
Ou um surfista elegante, de sociedade
Se você sentir que está ventando demais e não tiver agradável
O vento que tava tão bom
Então se lembre de mim
Com minha hipocrisia

Um amor como o nosso está fadado a acabar
E eu já não tenho mais fôlego pra soprar a fogueira
Você parece uma barata tonta, envenenada por Rodox
E teu barato tá muito descoordenado
E desse jeito não vai dar
Então se você ver um tarado na escada
Lembre-se de mim
Um vira-lata emocionado
Lembre-se de mim
Lembre-se de nós e a nuvem alaranjada
Lembre-se do nosso amor
Com as decisões que tomamos juntos
Das nossas músicas malucas
E esse talento de tomar a cena de assalto
Pagamos o preço, por não sermos medíocres
E gargalhamos de tudo
Lembre-se disso quando for falar mal de mim
Quando me atacar pelas costas
Lembre-se da nuvem e da luz
Alaranjada do lustre do quarto


[Cazuza]

25 de fevereiro de 2009

Não Passou

Passou?
Minúsculas eternidades
deglutidas por mínimos relógios
ressoam na mente cavernosa.

Não, ninguém morreu, ninguém foi infeliz.
A mão- a tua mão, nossas mãos-
rugosas, têm o antigo calor
de quando éramos vivos. Éramos?

Hoje somos mais vivos do que nunca.
Mentira, estarmos sós.
Nada, que eu sinta, passa realmente.
É tudo ilusão de ter passado.

[Mais uma da minha fase Drumond]

20 de fevereiro de 2009

O enterrado vivo

É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência

[Carlos Drummond de Andrade]

Carlos Drumond diz:

E sou meu próprio frio que me fecho longe do amor desabitado e líquido, amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia em sete dias de sete vidas de ouro, amor, fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março, amor, quem contaria ? E já não sei se é jogo, ou se poesia.

Dúvidas

Dúvidas, dúvidas
Será que eu ainda te amo
Ou é mais um sinal
Da minha inclinação pro banal?

Será que você quer
Meu lado carnaval
Ou prefere ficar em casa?

Na dúvida, dúvidas
Tome o meu amor pela metade
Pra não machucar
Fuja um pouco da minha tristeza
Não há grandeza na dúvida
Pode ter certeza

Dúvidas, dúvidas
Será que eu acredito
Que tudo vai mudar
Ou é melhor virar a mesa?

Somos os reis da incerteza
Exploda um avião
Vá pra bem longe
Da minha confusão
Negue a sua ajuda
Fuja, fuja
Não há dúvida em nenhuma grandeza
Pode ter certeza

[Cazuza]

19 de fevereiro de 2009

...


[Mormaço - Paralamas]

Caio diz:

[...]
"Ar blasé" - não sei o que significa isso. Certa vez num grupo de psicanálise (fiz 14 anos, ganhei duas altas: acho que lido mais ou menos bem com meus demônios) uma garota disse que eu era "altivo". Achei chique. Talvez você queira dizer "ar aristocrático"?
Bivar, que tem um olhar doce sobre o mundo, certa vez disse que eu parecia um príncipe - normando. Não sei por que "normando", mas também achei bonito. Sou terrivelmente tímido e, na verdade, acho que tenho mais é um ar de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada, passou fome, dormiu ao relento.
Eu "não resisto a uma baixaria bem brega"! Resisto sim. Tenho um passado hippie que me deixou muitas coisas boas. Estou sempre preocupado com a ética, com a beleza, com a dignidade. Sou educadíssimo, e fui criado de maneira muito católica, com toda aquela culpa de "maus" pensamentos, "más" ações, e uma terrível nostalgia da "bondade" (como a Alice do Woody Allen).
Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras - e por tudo isso, ando cada vez mais só. É como me sinto melhor.

Hills like white elephants

The hills across the valley of the Ebro were long and white. On this siode there was no shade and no trees and the station was between two lines of rails in the sun. Close against the side of the station there was the warm shadow of the building and a curtain, made of strings of bamboo beads, hung across the open door into the bar, to keep out flies. The American and the girl with him sat at a table in the shade, outside the building. It was very hot and the express from Barcelona would come in forty minutes. It stopped at this junction for two minutes and went to Madrid.
'What should we drink?' the girl asked. She had taken off her hat and put it on the table.

'It's pretty hot,' the man said.

'Let's drink beer.'

'Dos cervezas,' the man said into the curtain.

'Big ones?' a woman asked from the doorway.

'Yes. Two big ones.'

The woman brought two glasses of beer and two felt pads. She put the felt pads and the beer glass on the table and looked at the man and the girl. The girl was looking off at the line of hills. They were white in the sun and the country was brown and dry.

'They look like white elephants,' she said.

'I've never seen one,' the man drank his beer.

'No, you wouldn't have.'

'I might have,' the man said. 'Just because you say I wouldn't have doesn't prove anything.'

The girl looked at the bead curtain. 'They've painted something on it,' she said. 'What does it say?'

'Anis del Toro. It's a drink.'

'Could we try it?'

The man called 'Listen' through the curtain. The woman came out from the bar.

'Four reales.' 'We want two Anis del Toro.'

'With water?'

'Do you want it with water?'

'I don't know,' the girl said. 'Is it good with water?'

'It's all right.'

'You want them with water?' asked the woman.

'Yes, with water.'

'It tastes like liquorice,' the girl said and put the glass down.

'That's the way with everything.'

'Yes,' said the girl. 'Everything tastes of liquorice. Especially all the things you've waited so long for, like absinthe.'

'Oh, cut it out.'

'You started it,' the girl said. 'I was being amused. I was having a fine time.'

'Well, let's try and have a fine time.'

'All right. I was trying. I said the mountains looked like white elephants. Wasn't that bright?'

'That was bright.'

'I wanted to try this new drink. That's all we do, isn't it - look at things and try new drinks?'

'I guess so.'

The girl looked across at the hills.

'They're lovely hills,' she said. 'They don't really look like white elephants. I just meant the colouring of their skin through the trees.'

'Should we have another drink?'

'All right.'

The warm wind blew the bead curtain against the table.

'The beer's nice and cool,' the man said.

'It's lovely,' the girl said.

'It's really an awfully simple operation, Jig,' the man said. 'It's not really an operation at all.'

The girl looked at the ground the table legs rested on.

'I know you wouldn't mind it, Jig. It's really not anything. It's just to let the air in.'

The girl did not say anything.

'I'll go with you and I'll stay with you all the time. They just let the air in and then it's all perfectly natural.'

'Then what will we do afterwards?'

'We'll be fine afterwards. Just like we were before.'

'What makes you think so?'

'That's the only thing that bothers us. It's the only thing that's made us unhappy.'

The girl looked at the bead curtain, put her hand out and took hold of two of the strings of beads.

'And you think then we'll be all right and be happy.'

'I know we will. Yon don't have to be afraid. I've known lots of people that have done it.'

'So have I,' said the girl. 'And afterwards they were all so happy.'

'Well,' the man said, 'if you don't want to you don't have to. I wouldn't have you do it if you didn't want to. But I know it's perfectly simple.'

'And you really want to?'

'I think it's the best thing to do. But I don't want you to do it if you don't really want to.'

'And if I do it you'll be happy and things will be like they were and you'll love me?'

'I love you now. You know I love you.'

'I know. But if I do it, then it will be nice again if I say things are like white elephants, and you'll like it?'

'I'll love it. I love it now but I just can't think about it. You know how I get when I worry.'

'If I do it you won't ever worry?'

'I won't worry about that because it's perfectly simple.'

'Then I'll do it. Because I don't care about me.'

'What do you mean?'

'I don't care about me.'

'Well, I care about you.'

'Oh, yes. But I don't care about me. And I'll do it and then everything will be fine.'

'I don't want you to do it if you feel that way.'

The girl stood up and walked to the end of the station. Across, on the other side, were fields of grain and trees along the banks of the Ebro. Far away, beyond the river, were mountains. The shadow of a cloud moved across the field of grain and she saw the river through the trees.

'And we could have all this,' she said. 'And we could have everything and every day we make it more impossible.'

'What did you say?'

'I said we could have everything.'

'No, we can't.'

'We can have the whole world.'

'No, we can't.'

'We can go everywhere.'

'No, we can't. It isn't ours any more.'

'It's ours.'

'No, it isn't. And once they take it away, you never get it back.'

'But they haven't taken it away.'

'We'll wait and see.'

'Come on back in the shade,' he said. 'You mustn't feel that way.'

'I don't feel any way,' the girl said. 'I just know things.'

'I don't want you to do anything that you don't want to do -'

'Nor that isn't good for me,' she said. 'I know. Could we have another beer?'

'All right. But you've got to realize - '

'I realize,' the girl said. 'Can't we maybe stop talking?'

They sat down at the table and the girl looked across at the hills on the dry side of the valley and the man looked at her and at the table.

'You've got to realize,' he said, ' that I don't want you to do it if you don't want to. I'm perfectly willing to go through with it if it means anything to you.'

'Doesn't it mean anything to you? We could get along.'

'Of course it does. But I don't want anybody but you. I don't want anyone else. And I know it's perfectly simple.'

'Yes, you know it's perfectly simple.'

'It's all right for you to say that, but I do know it.'

'Would you do something for me now?'

'I'd do anything for you.'

'Would you please please please please please please please stop talking?'

He did not say anything but looked at the bags against the wall of the station. There were labels on them from all the hotels where they had spent nights.

'But I don't want you to,' he said, 'I don't care anything about it.'

'I'll scream,' the girl siad.

The woman came out through the curtains with two glasses of beer and put them down on the damp felt pads. 'The train comes in five minutes,' she said.

'What did she say?' asked the girl.

'That the train is coming in five minutes.'

The girl smiled brightly at the woman, to thank her.

'I'd better take the bags over to the other side of the station,' the man said. She smiled at him.

'All right. Then come back and we'll finish the beer.'

He picked up the two heavy bags and carried them around the station to the other tracks. He looked up the tracks but could not see the train. Coming back, he walked through the bar-room, where people waiting for the train were drinking. He drank an Anis at the bar and looked at the people. They were all waiting reasonably for the train. He went out through the bead curtain. She was sitting at the table and smiled at him.

'Do you feel better?' he asked.

'I feel fine,' she said. 'There's nothing wrong with me. I feel fine.'


[Ernest Hemingway]

18 de fevereiro de 2009

Esotérico

Não adianta nem me abandonar
Porque mistério sempre há de pintar por aí
Pessoas até muito mais vão lhe amar
Até muito mais difíceis que eu prá você
Que eu, que dois, que dez, que dez milhões
Todos iguais
Até que nem tanto esotérico assim
Se eu sou algo incompreensível
Meu Deus é mais
Mistério sempre há de pintar por aí
Não adianta nem me abandonar
Nem ficar tão apaixonada
Que nada, não sabe nadar
E morre afogada por mim

[Gilberto Gil]

In the Morning

Funny how my favorite shirt
Smells more like you than me
Bitter traces left behind
Stains no one can see

In the mornin'
Baby in the afternoon

You're gonna put me in an early grave
I know I'm your slave whenever you call

I can't stop myself from callin'
Callin' out your name
I can't stop myself from fallin'
Fallin' back again

[Norah Jones]

17 de fevereiro de 2009

i'll go crazy.

Come 'ere baby
You know you drive me up the wall
the way you make good on all the nasty tricks you pull
Seems like we're makin' up more than we're makin' love
And it always seems you got someone on your mind other than me
Girl, you got to change your crazy ways
You hear me?!

13 de fevereiro de 2009

Carne de pescoço

Andava tão calmo
Dava pra desconfiar
Levando a minha vida
Sem me preocupar
Você pintou
Eu tava quieto no meu canto
Curtiu com a minha cara
Foi me provocando
Pensando que eu fosse
Entrar no teu jogo
Brincar de apaixonar
O coração de um bobo
Depois tirar o corpo fora
Pra variar
Achando otário todo o cara
Que quer te amar

Baby, você marcou touca
Porque eu sou carne de pescoço
Você topou com um louco
Pra se livrar de mim.

Vai ser fogo!

[Cazuza]

12 de fevereiro de 2009

O que obviamente não presta...

Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. Para limpar a palavra de alguma solenidade - uso bosta. Nasci para administrar o à-toa, o em vão, o inútil. Prefiro as máquinas que servem parar não funcionar: quando cheias de areia, de formiga e musgo - elas podem um dia milagrar de flores. Também as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro - elas podem um dia milagrar violetas. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável!

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Prefiro as palavras obscuras que moram no fundo de uma cozinha – tipo borra, latas, cisco. Do que as palavras que moram nos sodalíscios – tipo excelência ,conpíscuo, majestade. Também os meus alter egos são todos borra, ciscos, pobres-diabo que poderiam morar nos fundos de uma cozinha – tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego Preto etc. Todos bêbados ou bocós. E todos condizentes com andrajos. Um dia alguém me sugeriu que adotasse um alter ego respeitável – tipo um príncipe, um almirante, um senador. Eu perguntei: Mas quem ficará com os meus abismos se os pobres-diabos não ficarem?

[Manoel de Barros]

11 de fevereiro de 2009

Tu e eu

Somos diferentes, tu e eu.
Tens forma e graça
e a sabedoria de só saber crescer
até dar pé.
Eu não sei onde quero chegar
e só sirvo para uma coisa
- que não sei qual é!
És de outra pipa
e eu de um cripto.
Tu, lipa
Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade
roque lenha
muito heavy
Prefiro o barroco italiano
e dos alemães
o mais leve.
És vidrada no Lobo
eu sou mais albônico.
Tu, fão.
Eu, fônico.

És suculenta
e selvagem
como uma fruta do trópico
Eu já sequei
e me resignei
como um socialista utópico.
Tu não tens nada de mim
eu não tenho nada teu.
Tu, piniquim.
Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas
que começam mal e terminam pior.
Gosto de graves rituais
em que sou pertinente
e, ao mesmo tempo, o prior.
Tu és um corpo e eu um vulto,
és uma miss, eu um místico.
Tu, multo.
Eu, carístico.

És colorida,
um pouco aérea,
e só pensas em ti.
Sou meio cinzento,
algo rasteiro,
e só penso em Pi.
Somos cada um de um pano
uma sã e o outro insano.
Tu, cano.
Eu, clidiano.

Dizes na cara
o que te vem a cabeça
com coragem e ânimo.
Hesito entre duas palavras,
escolho uma terceira
e no fim digo o sinônimo.
Tu não temes o engano
enquanto eu cismo.
Tu, tano.
Eu, femismo.

[Luiz Fernando Veríssimo]

Pecado Original

Todo dia, toda noite
Toda hora, toda madrugada
Momento e manhã
Todo mundo, todos os segundos do minuto
Vivem a eternidade da maçã
Tempo da serpente nossa irmã
Sonho de ter uma vida sã
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo beijo, todo medo
Todo corpo em movimento
Está cheio de inferno e céu
Todo santo, todo canto
Todo pranto, todo manto
Está cheio de inferno e céu
O que fazer com o que Deus nos deu?
O que foi que nos aconteceu?
Quando a gente volta
O rosto para o céu
E diz olhos nos olhos da imensidão:
Eu não sou cachorro não!
A gente não sabe o lugar certo
De colocar o desejo
Todo homem, todo lobisomem
Sabe a imensidão da fome
Que tem de viver
Todo homem sabe que essa fome
É mesmo grande
Até maior que o medo de morrer
Mas a gente nunca sabe mesmo
Quê que quer uma mulher

[Caetano Veloso]

10 de fevereiro de 2009

Será?

Acho que hoje a minha inspiração fugiu com a sua calma.

Entranhas

[...]
O amor vai pingando sobre o telhado,
amargo enquanto vocábulo:
deserto parido.
A vida é um estupro:
nasci para morrer.
Renascer das cinzas,
das sobras,
das teias...
Vou lutar até o orgasmo.
A noite
arrotou.
Assim seja,
assim sangre...
Entre a poeira de mim:
o prazer.
Caroço de paixão.
Vou morrer...
Vou morrer... Mas é só para te humilhar.
Vem...
Degola meu cheiro.
Não sou mulher,
sou distanásia.

[Agostina Akemi]

8 de fevereiro de 2009

Bem-me-quer

Diga que me odeia
Mas diga que não vive sem mim
Eu sou uma praga
Maria-sem-vergonha do seu jardim

Você tem ciúme
Mas gosta de me ver rebolar
Eu topo tudo
Sou flor que se cheire em qualquer lugar

Bem-me-quer, mal-me-quer
Bem-me-quer, mal-me-quer

Rasgue minha roupa
Mas por favor não dê beliscão
Eu fico nua
Depois você reclama quando eu chamo atenção

Xingue minha laia
Mas venha me fazer cafuné
Eu faço greve
Até você me amar ou dar um pontapé


[Rita Lee, Roberto de Carvalho]

6 de fevereiro de 2009

Dentro da menina... ainda dança.

Vem sem receio: eu te recebo

Como um dom dos deuses do deserto

Que decretaram minha trégua, e permitiram

Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,

Que meus dedos não te prendam

Mas contornem teu raro perfil

Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite

E conforto, porto de partida para a fundação

Do teu reino, em que a sombra

Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve

Como se dançasse numa praia uma menina.

[Lya Luft]

Essas coisas...

Sinto, meu amor,
Que o amor é isso.
Essas coisas
Muito fora de juízo.

[Moda de sangue - Elis Regina]

5 de fevereiro de 2009

Boca Mole

Sou abençoado com conversas femininas. Elas esquecem que estou ali e reviram o feno do celeiro. Soltam os cachorros nos vizinhos.
[...]
Mulher quando fala mal é profissional - são amadoras para receber elogios. Se os varões soubessem o quanto são avaliados desistiriam de acordar. Eu desisti de dormir.
As meninas têm uma tese infalível para comprovar a masculinidade do sujeito. Não é reparando nos trejeitos, na flexão de palavras, nas gentilezas vitorianas. É analisando a boca. A boca diz tudo. Lábios grossos, lábios finos: nada disso importa. O que faz a diferença é a rigidez. A firmeza. Boca requer cintura e bíceps.
Homem que é homem não pode apresentar boca mole. Pior do que enxergar o namorado penteando as sobrancelhas. Pior do que macho com teta. Pior do que transar com meia escura. [...]
É aquele que fala sem tensionar os cantos da boca. As linhas vermelhas não ameaçam desejos. Os ângulos não se mexem. É uma afetação treinada, confessa seu pensamento a partir de bolhas de sabão. A vontade é estourar suas frases no momento em que estão saindo.
A língua isola os ruídos, as quedas e os rompantes. Não vai babar, não vai cuspir, não vai mostrar os nervos. É um palavrório de gengiva. Estica os lábios com a displicência de suspensórios, não aperta a carne como cinto.
Homem de boca mole é reconhecido no cumprimento. Beija como tia: dando a face. O Instituto Rio Branco veta seu ingresso na diplomacia, mesmo que seja versado em seis idiomas. Perigoso para a manutenção da paz e das orgias.
Engoliu um saxofone. Engoliu a própria mãe. É o marmanjo que engole a gripe para ser educado.
Seu desenho é assexuado. Não sugere a violência das pernas com o sopro, não insinua a crueldade dos braços ao chupar o ar.
Homem que é homem já vai suando com a boca antes de qualquer coisa.
Boca mole é um teatro de dedinhos que as crianças costumam fazer. Um ventríloquo arrebentado.
Não é problema de articulação, é de junção. Complicado devorar um boca mole, não tem tempero, não tem sal, é o mesmo que sopa, mingau, amassadinho de fruta.
Grosseria tem perdão, a falta de iniciativa é indesculpável.
Mulher odeia homem que palita os dentes em churrascaria. Odeia ainda mais o boca mole, que não consegue nem segurar o palito.

[do sensacional Fabricio Carpinejar]

Já me resignei...

Ainda que chova, ainda que doa
Ainda que a distância
Corroa as horas do dia
E caia a noite sem estrelas
O mundo brilha um pouquinho mais
A cada vez que você sorri

[Pablo Neruda]

Ai!

Como são estranhas as noites que não dormes comigo...

4 de fevereiro de 2009

Madame Bovary - Flaubert

Oh! Que impossibilidade! Nada, aliás, valia o trabalho da procura; tudo mentia! Cada sorriso escondia um bocejo de tédio, cada alegria uma maldição, qualquer prazer um desgosto e os melhores beijos deixavam nos lábios apenas um irrealizável desejo de uma maior volúpia.
Um estertor metálico arrastou-se nos ares e quatro pancadas ouviram-se no sino do convento. Quatro horas! E tinha a impressão de estar lá, naquele banco, desde a eternidade. Porém um infinito de paixões pode caber num minuto, como uma multidão num pequeno espaço.

Monólogo de Molly

[...] quanto mais atenção você dá a eles, mais eles a tratam como lixo. Eu não me importo com o que qualquer um possa dizer, mas seria muito melhor para o mundo se ele fosse governado por mulheres. Você não veria mulheres indo e se matando umas às outras e massacrando. Quando é que a gente jamais vê mulheres se rolando à volta bêbadas como eles fazem? Ou apostando nos cavalos todo o dinheiro que têm e perdendo? Sim, porque uma mulher, o que quer que ela faça, sabe quando deve parar.

[James Joyce em Ulisses]

3 de fevereiro de 2009

Eu... só sei insistir

[...]

Há meia hora ventava
E tínhamos coragem
E eu já estou cansado
De não gostar de mim.


[Cazuza - A Orelha da Euridice]

2 de fevereiro de 2009

Dois de Fevereiro...

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

[Adélia Prado]