A menina
Primeiro dia de aula. A menina escreveu seu nome completo na primeira página do caderno escolar, depois seu endereço, depois "Porto Alegre", depois "Rio Grande do Sul", depois "Brasil", "América do Sul", "Terra", "Sistema Solar", "Via Láctea" e "Universo". A menina sentada ao seu lado olhou, viu o que ela tinha escrito, e disse: "Faltou o CEP." Ficaram inimigas para o resto da vida. A menina era apaixonada pelo Marcos, o Marcos não lhe dava bola. Um dia, no recreio, uma bola chutada pelo Marcos bateu na sua coxa. Ele abanou de longe, gritou "Desculpa", depois foi difícil tomar banho de chuveiro sem molhar a coxa e apagar a marca da bola. Ela teve que ficar com a perna dobrada para fora do box, a mãe não entendeu o chão todo molhado, mas o que é que mãe entende de paixão? Quem dava bola para a menina era o Mozart, tão feio que o apelido dele na escola era "Feio". Foi ele quem disse que era perigoso ela andar com o endereço completo na primeira página do caderno. Por que perigoso? "Sei lá", disse o Mozart. "Com tanto sequestro." Ela não entendeu. Depois disse: ― Quero ver me encontrarem no Universo. Aí foi o Mozart que não entendeu. Naquele ano, a última página do caderno da menina estava toda coberta com o nome do Marcos repetido. Marcos e sobrenome, Marcos e sobrenome. Às vezes o nome dela com o sobrenome do Marcos. Às vezes o nome dos dois com o sobrenome dele. E na saída do último dia de aula antes das provas alguém arrancou o caderno das mãos dela e levou para o Marcos ver. Ela correu, tirou o caderno das mãos do Marcos e disse "Desculpa". Naquela noite chorou tanto que a mãe teve que lhe dar um calmante. Nunca mais falou com o Marcos. Nunca mais encheu seu caderno com o nome de alguém. Nunca mais se apaixonou, ou chorou, do mesmo jeito. Do pior dia da sua vida só o que repetiu muitas vezes, depois, foi o calmante. Pensou que se um dia saísse um livro com o seu diálogo com Marcos seria um livro de 100 páginas com "Desculpa!" na primeira página e "Desculpa" na última, e todas as outras páginas em branco. Seria o livro mais triste do mundo. Um professor disse para a menina que só havia um jeito de compreender o Universo. Ela devia pensar numa esfera dentro de uma esfera maior, dentro de uma esfera ainda maior, dentro de uma esfera maior ainda, até chegar a uma grande esfera que incluiria todas as outras, e que por sua vez estaria dentro da esfera menor. A menina então entendeu que a sua vizinha de classe tinha razão, era preciso botar o CEP. Num universo assim, era preciso fixar um detalhe para você nunca se perder. Nem que o detalhe fosse a mancha no teto do seu quarto. A menina disse para a Rute que era preciso escolher um detalhe da sua vida, em torno do qual o Universo se organizaria. Cada pessoa precisava escolher um momento, uma coisa, uma frase, um veraneio, um quindim, uma mancha no teto...
Um lugar em que pudesse ser encontrada, era isso.
[Luis Fernando Verissimo.]
Primeiro dia de aula. A menina escreveu seu nome completo na primeira página do caderno escolar, depois seu endereço, depois "Porto Alegre", depois "Rio Grande do Sul", depois "Brasil", "América do Sul", "Terra", "Sistema Solar", "Via Láctea" e "Universo". A menina sentada ao seu lado olhou, viu o que ela tinha escrito, e disse: "Faltou o CEP." Ficaram inimigas para o resto da vida. A menina era apaixonada pelo Marcos, o Marcos não lhe dava bola. Um dia, no recreio, uma bola chutada pelo Marcos bateu na sua coxa. Ele abanou de longe, gritou "Desculpa", depois foi difícil tomar banho de chuveiro sem molhar a coxa e apagar a marca da bola. Ela teve que ficar com a perna dobrada para fora do box, a mãe não entendeu o chão todo molhado, mas o que é que mãe entende de paixão? Quem dava bola para a menina era o Mozart, tão feio que o apelido dele na escola era "Feio". Foi ele quem disse que era perigoso ela andar com o endereço completo na primeira página do caderno. Por que perigoso? "Sei lá", disse o Mozart. "Com tanto sequestro." Ela não entendeu. Depois disse: ― Quero ver me encontrarem no Universo. Aí foi o Mozart que não entendeu. Naquele ano, a última página do caderno da menina estava toda coberta com o nome do Marcos repetido. Marcos e sobrenome, Marcos e sobrenome. Às vezes o nome dela com o sobrenome do Marcos. Às vezes o nome dos dois com o sobrenome dele. E na saída do último dia de aula antes das provas alguém arrancou o caderno das mãos dela e levou para o Marcos ver. Ela correu, tirou o caderno das mãos do Marcos e disse "Desculpa". Naquela noite chorou tanto que a mãe teve que lhe dar um calmante. Nunca mais falou com o Marcos. Nunca mais encheu seu caderno com o nome de alguém. Nunca mais se apaixonou, ou chorou, do mesmo jeito. Do pior dia da sua vida só o que repetiu muitas vezes, depois, foi o calmante. Pensou que se um dia saísse um livro com o seu diálogo com Marcos seria um livro de 100 páginas com "Desculpa!" na primeira página e "Desculpa" na última, e todas as outras páginas em branco. Seria o livro mais triste do mundo. Um professor disse para a menina que só havia um jeito de compreender o Universo. Ela devia pensar numa esfera dentro de uma esfera maior, dentro de uma esfera ainda maior, dentro de uma esfera maior ainda, até chegar a uma grande esfera que incluiria todas as outras, e que por sua vez estaria dentro da esfera menor. A menina então entendeu que a sua vizinha de classe tinha razão, era preciso botar o CEP. Num universo assim, era preciso fixar um detalhe para você nunca se perder. Nem que o detalhe fosse a mancha no teto do seu quarto. A menina disse para a Rute que era preciso escolher um detalhe da sua vida, em torno do qual o Universo se organizaria. Cada pessoa precisava escolher um momento, uma coisa, uma frase, um veraneio, um quindim, uma mancha no teto...
Um lugar em que pudesse ser encontrada, era isso.
[Luis Fernando Verissimo.]