31 de julho de 2008

João e (a vellha) Maria

Duas vezes eu quase morri de saudades de você. Uma quando eu vi Closer e lembrei que o amor, como deveria, não existe. E outra quando escutei sem esperar “Quem te viu, quem te vê” e lembrei que você era um pedaço charmoso de tudo o que o mundo e a vida têm de mais charmoso. Doeu lembrar ou aceitar que esse pedaço não existe mais nem no predinho azul e nem no sofá azul. Neste dia você finalmente morreu, e eu chorei de luto sem teatro, de luto não atual, de resto de luto. De um luto morto.
Você namora, casou, sei lá, com a menina de bolsas e saias bonitas que não tem cara de louca. E essa é a minha vingança, porque eu sei que você é mais feliz sem loucura, mas a felicidade e a normalidade não existem. Eu ainda acho que a gente tinha alguma verdade que faz você, nem que seja a cada 100 anos, arranhar um Chico Buarque em meu luto. Um luto cheio de vida.
Vez ou outra chegam aqueles seus emails que você responde por educação e são cheios de frases quase íntimas envoltas pela maior frieza do mundo. É como se a cada letra você reafirmasse que somos amigos cheios daquela inteligência de camaradas descolados e bem resolvidos que, como tudo na vida que ainda respira e tem cor, seguiram em frente.
Sim, somos isso mesmo, claro. Mas eu caguei para tudo isso e fico com o seu abraço naquele fim de festa estranho em que você foi o dj e, para a minha surpresa, me fez matar a saudade do meu mundo.
Eu fico com as danças que sem nenhum medo das críticas eu improvisei para o nosso espaço no universo. Dancei como uma bailarina que volta a funcionar milagrosamente, e pela última vez, numa caixinha de música quebrada.
Eu fico para sempre com o que você plantou em mim, essa erva do mal. Você sabia que me tornei uma mal-humorada-pseudo- intelectual totalmente insuportável e crítica? Você ao menos era culto de verdade.
Você está bem onde está, eu estou bem onde estou. Mas, como aconteceu naquele dia na praia, em que eu passei indo com meu novo amor e cruzei você vindo com seu novo amor, não tem como a gente não olhar para trás.

[Tati Bernardi]


Ah,
deixa...

A sede do peixe

'[...]
Para o que não tem mais razão
A calma do louco ensinou
A dizer nada

Para o que não tem mais nada
A calma do louco ensinou
a dizer razão.'

Amén, Milton.

30 de julho de 2008

Circunlóquios

Não se esquive do fato de haver uma história em suspenso aqui, não digamos assim, pois uma história jamais fica suspensa: ela se consuma no que se interrompe, ela é cheia de pontos finais internos, o que a gente imagina que poderia ser talvez uma continuação às vezes não passa de um novo capítulo, eventualmente conservando as mesmas personagens do anterior, mas seguindo uma ordem cujas regras nos são ilusoriamente às vezes familiares? ou inteiramente aleatórias? Isso eu não sei, mas a verdade é que chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, e o problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-quios então, e a maioria das vezes a graça reside justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos, digamos assim: que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? ou que não exista mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos tais circunlóquios. Ultrapasse-os, ordeno...


[Caio Fernando Abreu em Morangos Mofados]

25 de julho de 2008

[...]
A minha namorada é tão bonita, tem olhos como besourinhos do céu
Tem olhos como estrelinhas que estão sempre balbuciando aos passarinhos...
É tão bonita! tem um cabelo fino, um corpo menino e um andar pequenino
E é a minha namorada... vai e vem como uma patativa, de repente morre de amor
Tem fala de S e dá a impressão que está entrando por uma nuvem adentro...
Meu Deus, eu queria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou-nentes
Rir e num átimo dar um beijo nela e sair correndo
E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio vexado, meio sem saber o que faça...
A minha namorada é muito culta, sabe aritmética, geografia, história, contraponto
E se eu lhe perguntar qual a cor mais bonita ela não dirá que é a roxa porém brique.
Ela faz coleção de cactos, acorda cedo vai para o trabalho
E nunca se esquece que é a menininha do poeta.
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer ir à Europa? ela diz: Quero se mamãe for!
Se eu lhe perguntar: Meu anjo, quer casar comigo? Ela diz... — não, ela não acredita.
É doce! gosta muito de mim e sabe dizer sem lágrimas:
Vou sentir tantas saudades quando você for...
É uma nossa senhorazinha, é uma cigana, é uma coisa
Que me faz chorar na rua, dançar no quarto, ter vontade de me matar e de ser presidente da república.
É boba, ela! tudo faz, tudo sabe, é linda, ó anjo de Domremy!
Dêem-lhe uma espada, constrói um reino ; dêem-lhe uma agulha, faz um crochê
Dêem-lhe um teclado, faz uma aurora, dêem-lhe razão, faz uma briga...!
E do pobre ser que Deus lhe deu, eu, filho pródigo, poeta cheio de erros
Ela fez um eterno perdido...


[Elegia Lírica - Vinícius de Moraes]





S O F R O

O que faço com essa lucidez?!

24 de julho de 2008

Pertencer

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente,
a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou. Tenho certeza de que
no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam,
eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém.
Nasci de graça. Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a
me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino.
A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira:
ela pertence a Deus.
Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém,
é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e
de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre.
Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.
Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente.
Não sei mais como se é.
E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir
como heras num muro. Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então
nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo
de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse
de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas
alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética.
É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e,
por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho
com papel de presente os meus sentimentos. Pertencer não vem apenas de ser fraca
e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de
pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha
força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.
Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida. No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito.

[...]

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver.
Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!


[Clarice Lispector]

23 de julho de 2008

Negue.

Pois eu espero que o homem que me trair tenha a delicadeza de negar sempre. Não me interessa que ele seja sincero e verdadeiro; quero achar que ele nunca me traiu, e para isso ele pode (e deve) mentir descaradamente, dizer que estou pirada, que caia um raio em sua cabeça se estiver mentindo. Como nenhum raio vai cair mesmo, ele pode falar à vontade; eu vou acreditar em tudo e ficar bem feliz. Um dia eu li num jornal que um casal francês bem idoso estava sentado num banco do jardim de Luxembourg, em Paris, conversando, quando ela perguntou se ele tinha ou não tido um caso com uma tal fulana, 50 anos atrás. Afinal, tanto tempo já havia passado, ele podia dizer. O marido confessou, e a velhinha deu-lhe uma dentada na orelha tão violenta que ele foi parar no hospital. Trair, ainda vai, mas confessar, jamais.

[Danuza Leão]

22 de julho de 2008
















Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar

Ai, que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar

Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus
Só pra me provocar

Meu amor juro por Deus
Me sinto incendiar

Meu amor juro por Deus
Que a luz dos olhos meus
Já não pode esperar

Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus
Sem mais la ra ra ra...

Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor e só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar
Precisa se casar, precisa se casar...

21 de julho de 2008

A quem interessar possa.

Simplesmente chega e assopra. E eu, como um castelo de cartas, me desfaço toda.
Toda a solidez, as frases feitas, o conselho das amigas e a auto-ajuda barata vai embora com seu primeiro toque.
E como me toca...
Como me espalha... Não sei se sangro ou derreto nas suas mãos.
Mas sei que chego a ser feliz enquanto você ensaia por cinco minutos a nossa volta. E são por essas horas plenas
que estou sempre lá quando me chama. Sempre lá pelos cinco minutos de alegria que me renderão uma semana de foça.

10 de julho de 2008

Motivos, desculpas e porquês...

Eu era uma pessoa melhor quando tinha um diário. Organização nunca foi meu forte, mas consigo manter as idéias da cabeça em ordem quando as passo pro 'papel'.
Manter um blog me parece desafiador. Exposição gratuita de imagem/sentimento é quase um hobby, mas compromissos me dão preguiça.
Não prometo postagens constantes e nem textos maravilhosos, mas pretendo encher esse espaço de desabafos, pensamentos sem sentido e textos que valham a pena dos meus autores favoritos.

Primeiro Pessoa!

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica
.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

[Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa]